
Em outra ocasião, já tive a oportunidade de expor as razões pelas quais investir no programa espacial não significa mandar dinheiro para o espaço, e sim alimentar muita gente, de cientistas e engenheiros a peões de obra. Mas hoje vou falar de algo ainda melhor: como ganhar dinheiro com o programa espacial.
Explorar o espaço não é só "ficar mandando cacareco para Marte", como diz um amigo meu. Você vai assistir neste sábado ao jogo da Seleção Brasileira? Pois é, agradeça ao fato de que alguém resolveu ir ao espaço para lhe permitir isso -- pois são os satélites que tornam possível a transmissão de imagens de TV ao redor do mundo, praticamente em tempo real.
O que isso quer dizer? Quer dizer que o espaço não é só ciência; pode também ser um negócio.
O Brasil já atentou para isso quando iniciou o desenvolvimento do Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão. Afinal, dali é mais barato lançar satélites do que em qualquer outro ponto do globo terrestre.
Isso acontece por que a Terra literalmente "dá um empurrãozinho extra" no foguete, permitindo economia de combustível e rendimento superior. Não é tão difícil de imaginar como isso ocorre. Imagine o planeta girando. Se você estiver exatamente sobre o pólo geográfico Sul, no meio da Antártida, você apenas girará sobre si mesmo, sem sair do lugar. Entretanto, quanto mais você se aproxima da linha do equador, maior a "volta" que você dá junto com a Terra, certo? Mas, não importando em que faixa você esteja, você completaria uma volta no mesmo tempo, certo? Afinal, o planeta gira como um todo coeso, com período de 23 horas e 56 minutos.
Moral da história: quanto mais perto do Equador, maior é a sua distância percorrida junto com a Terra, embora o tempo seja o mesmo: uma forma mais simples de dizer isso é que a sua velocidade (distância dividida pelo tempo) é maior.
Ou seja, quanto mais perto da linha do Equador você lançar um foguete, mais "velocidade inicial", de um ponto de vista de fora da Terra, ele terá.
Alcântara está a apenas 2 graus da linha do Equador. Seu principal concorrente é o Centro de Lançamento de Kourou, instalação européia localizada na Guiana Francesa, que está a 3 graus do Equador -- só um pouquinho mais longe.
E por que ninguém construiu uma base exatamente na linha do equador ainda? Porque nem só disso vive um centro espacial; é preciso que a localização cumpra uma série de pré-requisitos para a segurança dos vôos (mar por perto é altamente desejável, baixa densidade populacional nos arredores, condições climáticas favoráveis aos lançamentos na maior parte do ano, só para citar alguns dos fatores).
A única base que atendeu a esses requisitos e conseguiu fazer decolagens de foguete da linha do equador é o chamado Sea Launch, uma antiga plataforma de petróleo oceânica que foi convertida em centro de lançamento por um consórcio internacional. Quando ela precisa lançar algo, a plataforma se desloca como uma balsa até a linha do equador e dispara o foguete. O único problema é que a manutenção do Sea Launch é tão cara que ele em raríssimas ocasiões consegue tornar seus serviços competitivos com os oferecidos por Kourou -- ou Alcântara, quando a base brasileira começar a funcionar para valer.
Tudo bem, então, já vimos que o investimento em Alcântara pode ser bem interessante, do ponto de vista comercial. Mas não estamos esquecendo de nada, não? Ah, é, além da base, para fazermos lançamentos comerciais precisamos também dos foguetes e dos satélites.
Pois é, são duas coisas que o Brasil ainda não tem.
No campo dos foguetes, o país desenvolve por conta própria o seu VLS (Veículo Lançador de Satélites), também nascido nos anos 1980, que até hoje não conseguiu fazer nem um vôo bem-sucedido. É importante prosseguir nessa "teimosia aeroespacial" por uma razão: caso uma guerra estoure, não podemos nos dar ao luxo de não ter a quem pedir, caso precisemos lançar um satélite ao espaço. Mas é só isso mesmo. O VLS é pequeno demais para lançar satélites comerciais.
A solução encontrada pelo governo para alimentar os futuros lançamentos comerciais foi fazer uma parceria com a Ucrânia, que herdou a tecnologia dos foguetes da antiga União Soviética, mas não tem uma base boa para fazer o negócio sozinha.
Resultado: Brasil e Ucrânia criaram uma companhia binacional para usar o foguete Cyclone 4 na base de Alcântara. Segundo Sergio Gaudenzi, presidente da Agência Espacial Brasileira, o primeiro lançamento da joint-venture Alcantara Cyclone Space deve acontecer por volta de 2010 -- mas eu não colocaria minha mão no fogo por isso, a considerar o ritmo letárgico em que essas coisas caminham neste país.
Ainda há dúvidas entre os especialistas se o Cyclone 4 é uma opção suficientemente boa para o mercado de satélites (sobretudo para competir com gigantes como o Ariane 5, que serve a base européia de Kourou e consegue lançar dois ou três satélites de uma vez só na "órbita de ouro" dos artefatos de telecomunicações, a chamada órbita geoestacionária). Mas o fato é que ele, com um empurrãozinho extra da Terra em Alcântara, consegue levar um satélite até de médio porte à órbita geoestacionária. Dependendo do custo das operações, seu uso pode se tornar economicamente interessante para os potenciais clientes.
Legal, se tudo isso der certo, poderemos ter a base e o foguete em 2010. Vai faltar o que talvez seja o principal: satélites para lançar.
O Brasil tem seu programinha de satélites científicos e tecnológicos, mas só essa demanda não justificaria o investimento no projeto Alcantara Cyclone Space. Como eu disse antes, o negócio aqui é ganhar dinheiro, e para isso o esforço tem de angariar clientes comerciais e internacionais.
E aí esbarramos num problema: entre os satélites comerciais, pelo menos 80% deles possuem peças americanas ou são inteiramente fabricados por companhias ianques. O que significa que, para lançá-los, temos de ter autorização por escrito do governo dos Estados Unidos, que tem medo que sua preciosa tecnologia espacial vá parar na mão de países como o nosso.
Existe uma solução para o impasse: precisamos de um acordo de salvaguardas tecnológicas. É basicamente um documento que diz: "podem lançar seus satélites daqui que a gente promete que não vai espiar o que tem dentro deles".
Durante o governo Fernando Henrique Cardoso, esse acordo chegou a ser redigido e acertado com os americanos, mas tinha uma série de cláusulas que feriam a soberania: a mais grave delas é a de que o dinheiro ganho em Alcântara não poderia ser usado para o desenvolvimento dos nossos próprios foguetes. Embora a exigência fosse inócua para nós (fontes então no Ministério da Ciência e Tecnologia diziam que o dinheiro ganho em Alcântara ia para um "bolo" e de lá ficaria impossível rastrear o que foi gasto onde), ela era essencial para que o acordo fosse aceito pelo Congresso americano, que tem por princípio o esforço de não-proliferação de mísseis balísticos intercontinentais (a versão militar dos lançadores de satélite).
Ainda assim, a administração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva achou que era muita prepotência dos americanos nos dizer onde devíamos gastar o nosso dinheiro e derrubou aquele acordo, logo no início de seu primeiro mandato.
Desde então, o Brasil tem tentado sentar à mesa com os americanos para renegociar esse acordo, que emperra qualquer chance de sucesso comercial em Alcântara, mas o esforço ainda não resultou num outro texto aceitável para ambas as partes.
Disso, basicamente, depende o futuro da base brasileira. Não de instalações, não de tecnologias, não de clientes. Para variar, o grande entrave para o sucesso, ontem, hoje e sempre, é a burocracia.
Salvador Nogueira
Nenhum comentário:
Postar um comentário