terça-feira, 31 de março de 2009

Pena de 94 anos por crime fiscal e prêmio ao calote na Câmara expressam doenças profundas

Pena de 94 anos por crime fiscal e prêmio ao calote na Câmara expressam doenças profundas

Sentenças desconectadas da gravidade do delito e atos que afrontam a decência assombram o país

30.03.2009 - 19:27

Antonio Machado

A semana foi rica em contradições de um país que finge estar em paz, desdenha o desmanche moral e se deixa levar pelo torpor. A Câmara dos Deputados estendeu os benefícios contemplados por medida provisória (MP) baixada pelo governo para aliviar pequenas dívidas tributárias, coisa de até R$ 10 mil, com 60 meses de prazo máximo, para os calotes de qualquer valor, refinanciamento em até 15 anos e juros camaradas. O governo perdeu com os votos de sua própria base de partidos aliados. A oposição votou contra. Esse foi um Brasil. Do jeitinho, dos refinanciamentos recorrentes de dívidas fiscais, que caçoa de que paga em dia os impostos. Dois dias depois a juíza da 2ª Vara Federal de Guarulhos, cidade do aeroporto de Cumbica, Maria Isabel do Prado, expediu a sentença sobre o caso envolvendo o flagrante de contrabando de roupas pela dona da Daslu, ícone do comércio de alto luxo em São Paulo, Eliana Tranchesi: 94 anos e 6 meses de prisão, com detenção imediata. Os outros seis envolvidos também foram condenados a penas severas. Esse foi outro Brasil. Da Justiça que até ontem olhava de lado ao julgar crimes de gente influente e que hoje parece querer redimir-se, não se constrangendo em exacerbar sentenças, doa a quem doer - como que precisando afirmar-se, “criminalizar” o rico. Não basta a condenação. Ela tem de ser rigorosa, única, midiática. Entre um e outro Brasil há décadas de compadrio entre vilões e o poder, de relações incestuosas entre o público e o privado, leis lavradas de modo dúbio, permitindo o contraditório e chicanas que livram réus confessos da cadeia via ações protelatórias sem fim. Tais extremos são sintomas de doenças profundas, manifestações do Brasil velho hostil ao novo. Mas doentias também são as sentenças exemplares, desconectadas da gravidade do delito, e decisões tão corruptas quanto, como a quase anistia de devedores contumazes do Fisco que a Câmara aprovou, faltando o Senado se pronunciar. Uma a pretender a justiça saneadora pela força do exemplo. Outra a superar a decência. Entre o paroxismo da pena aplicada à dona da Daslu e o destrambelho dos deputados há muito em comum. Tais atos revelam a desarmonia latente entre as instituições, dramatizada na contorção das leis pelo Congresso, até pelo governo quando se mete a legislar pelo instrumento de exceção da medida provisória, para atender grupos de interesses, e a sua interpretação posterior pela Justiça ao agir como instância corregedora de atos legislativos. Pano de fundo antigo O pano de fundo destas disfunções é antigo. Mas vem se agravando, como demonstram os choques cada vez mais frequentes entre juízes e o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes - dentro dos quais a crítica à banalização do grampo como instrumento de investigação e o conflito suscitado pela operação Satiagraha, da Polícia Federal, contra o banqueiro Daniel Dantas, são só os casos mais notórios. Setores do Judiciário, entre procuradores e juízes, se organizam para transformar a Justiça. Mendes, outros ministros de cortes superiores e advogados se manifestam atingidos em suas prerrogativas. E mais pela PF, que cresce em meio à discórdia. Sentenças adjetivadas É este clima que talvez explique os termos duros da sentença da juíza que condenou Eliana Tranquesi, merecedora, segundo ela, da “maior reprovação, posto que a conduta da acusada, proveniente da cobiça em busca da acumulação de riqueza proveniente de meios ilícitos, visava a angariar recursos bilionários através de lesão ao erário”. Sentenças adjetivadas parecem pretender apoio para a aplicação das penas máximas. A Daslu, de fato, já estava quebrada quando PF e Receita flagraram em Cumbica indícios de importação irregular. Os tais “recursos bilionários” se chocam com vendas de dezenas de milhões e prejuízos desde que Tranquesi mudara a Daslu para sua sede suntuosa, virando marco do exclusivismo excludente. Bancadas da sonegação A sentença não é definitiva e cabe recurso. Eliana foi solta por força de habeas corpus e vai recorrer em liberdade. Ela sofre de câncer no pulmão, com metástase na coluna, o que não é amenizante. A considerar é o princípio da proporcionalidade da pena frente ao tamanho do crime, desprezado no caso. Sanção pecuniária de vulto produziria efeito maior, com uma pena de prisão não assombrosa e, por isso, inepta. Desperdiçou-se, além disso, a chance de se expor os absurdos das bancadas da sonegação no Congresso. Catatonia empresarial O que também surpreende é a catatonia do empresariado diante dos choques jurídico-policiais em que de alguma maneira são parte, bem como dos projetos caracterizadamente nocivos à ordem econômica e à percepção popular votados no Congresso em favor de interesses que buscam resultados mediante conchavo. As grandes empresas nacionais podem dispensar jogadas. Como relutam expurgar os interesses mais retrógrados, os valores elevados da livre iniciativa são cada vez menos estimados pela sociedade. Alguns níveis do capital admitem esse risco, mas falta o consenso sobre o que fazer. Poderiam, para começar, definir que empresa e policia não têm nada em comum.

Extraído de: http://cidadebiz.oi.com.br/paginas/47001_48000/47783-1.html

P.S. Parabéns ao colunista Antonio Machado! Gostaria muito de ser o autor de tão exclente artigo. Você escreveu tudo o que eu gostaria de escrever, mas não o faço porque em mim falta o talento que você tem de sobra.

Antonio Gomes Lacerda

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